Cineclube Polytheama

terça-feira, abril 08, 2008

Sessão 03/04/2008


Lua de Mel de Assassinos (Honeymoon Killers - EUA - 1970 - 108 min.) Direção: Leonard Kastle. Elenco: Shirley Stoler, Tony Lo Bianco, Dortha Duckworth, Mary Jane Higby, Doris Roberts, Kip McArdler, Marilyn Chris, Barbara Cason.

Sinopse (Capa do VHS da Costa Castelo Filmes - Lisboa/Portugal)

Martha Beck (Shirley Stoler) enfermeira chefe de profissão, inicia, através do "Clube da Amizade da Tia Carrie", uma relação amorosa, forte e exacerbada com Raymond Fernandes (Tony Lo Bianco) cuja a ocupação é seduzir mulheres solitárias para extorquir dinheiro.
Duas pessoas aparentemente normais que passam a provocar uma à outra uma loucura sem limites a caminho do assassínio.
Filme baseado em uma história verídica que chocou a América e o mundo dos anos 40.
Apesar do seu insucesso comercial quando do seu lançamento, tornou-se um dos mais significativos filmes de culto.

Comentário do Blog

A história é só isto? Inicialmente como fizemos no filme da sessão anterior descreveremos abaixo, como vemos os principais personagens deste filme.

Raymond Fernandes (Tony Lo Bianco)
É latino, elegante, com aparência de uns trinta e tantos anos, vive de extorquir mulheres solitárias carentes, manterá uma correspondência com Martha durante uns 3 meses antes de encontrá-la. Não age precipitadamente, sempre espera o momento certo para atacar.
Martha Beck (Shirley Stoller)
Mulher de meia idade entorno de 35 anos, com aspecto físico bem avantajado tanto na altura como no peso. Mora em Móbile City, no sul dos EUA, no Alabama. É enfermeira supervisora de um hospital onde controla seus subalternos com todo rigor. É solteira e vive com a mãe, aparentemente viúva. Martha tem uma amiga, a Bunny, que serve como acompanhante à sua mãe enquanto trabalha. Solitária. Quando tensa tem uma fome compulsiva.
Mãe de Martha, Mrs. Beck (Dortha Duckworth)
Senhora já na 3ª Idade que fica com Bunny durante o período de trabalho de Martha. Reclama sempre que é maltratada por Bunny. Gostaria que a filha tivesse um namorado.
Bunny (Doris Roberts)
É acompanhante da mãe de Martha enquanto ela se encontra no hospital, e vizinha. Com pena da solidão da amiga a inscreve no Clube da Amizade da Tia Carrey, e consegue convencer Martha a enviar o seu perfil para o clube.

Doris Acker (Ann Harris)
Uma velhota solitária, que mora no distrito de Morris, New Jersey, sócia também do clube da amizade, onde também conhece Ray e com ele se casa. A lua de mel será em um apartamento, futura casa do casal. Não entende porque a irmã, Martha, de Raymond tem que acompanhá-los. Gosta de cantar hinos americanos, enquanto se banha na banheira.
Myrtle Young (Marilyn Chris)
Mulher de vinte e cinco anos, mora em Little Rock em Arkansas, é do clube da amizade. Com a desculpa de que está grávida, contrata Ray, que falsifica o nome para Charles Martin, por US$ 4.000,00 , para casar com ela no Missouri, pois se o pai descobrisse que ela estava grávida perderia a herança. Ray a encontrará, mas com Martha ao lado.

Evelyn Long (Bárbara Cason)
Como Mirtle, não é tão velha, loura e esbelta. Encontrou Ray no clube da amizade. Mora em uma pensão em Pittsfield, em Massachusetts, cidade famosa pela vida cultural.
Janet Fay (Mary Jane Higby)
Aparenta ter uns 70 anos, viúva, mora Albany em Vermont, noroeste de Nova York. Católica praticante, é artesã, confecciona seus chapéus. Tem algum dinheiro, mas usa-o de forma controlada; tem uma filha, mas largará tudo para ir com Charles Martin (codinome de Ray) para NY, onde acredita que se casará com ele.
Delphine Downing (Kip McArdler)
Viúva de militar, que aparentemente morreu na guerra, existe uma fotografia de um soldado em cima de uma mesa redonda em um canto da sala. É de meia idade, tem uma filha, cultiva a história americana, tem uma águia em cima da lareira. Não fica claro onde mora, mas parece que próximo a Grand Rapids no Michigan, no norte do EUA. É de classe média, tem algum dinheiro e um seguro enorme para receber.

Este filme, foi refilmado 2 vezes: a primeira em 1996, pelo diretor mexicano Arturo Ripstein e se chamou "Profundo Carmesi". Ripstein dedica o filme a Martha, Raymond e Leonard; a segunda em 2006, pelo canadense Todd Robinson, com o título original "Lonely Hearts", no Brasil recebeu o título de "Os Fugitivos".

A história do filme que tem por base o processo Lonely Hearts Killers, um caso mediático que apaixonou a América nos anos 40, é: a história de um homem e uma mulher cujos destinos se cruzaram, modificando suas vidas.

O filme começa com o seguinte texto escrito:

"O incrível e chocante drama que vão assistir é talvez um dos mais bizarros episódios dos anais do crime americano. Estes acontecimentos inacreditáveis são baseados em artigos de jornais e registros judiciais. Trata-se de uma história verídica"

Este texto aparece em completo silêncio. Ao terminar aparece uma ambulância de Móbile City Hospital com o fundo musical de Mahler, dando clima do que será o filme.
Leonard Kastle compositor de óperas, um concerto para piano, sonatas para pano e violino e três roteiros não filmados " Wedding at Cana", " Change of Heart" e
"Shakespeare's Dog", só fez este filme e, quando o fez era um homem maduro, 40 anos. O filme não tem grandes inovações estéticas, mas o roteiro impecável onde nenhuma cena é gratuita, tudo sempre se relaciona. Acreditamos que tem uma grande influência operística.

Para melhor elucidar este filme, repetiremos o diálogo inicial. Logo após uma pequena explosão no laboratório do hospital, sai a enfermeira supervisora, Martha, de sua sala para ver o que aconteceu e encontra no local onde ocorreu a explosão um casal. Antes de apresentar o diálogo, vamos tentar descrever o ambiente. Martha está do lado esquerdo. Jackson em cima de um banco abrindo as janelas do lado esquerdo e no fundo no meio da tela, Severns. Existe uma lâmpada fluorescente com uma iluminação super exposta, que incomoda deixando difusa parte do cenário. Este recurso Leonard Kastle usará em todo o filme.
Martha — Que aconteceu
Jackson
(enfermeiro, em pé, em cima de um banco abrindo as janelas) — Alguém cometeu um pequeno engano e juntou cloro com amoníaco. Acho que nunca mais o voltará acontecer.
MarthaSeverns (enfermeira), você de novo? Está Bem?
SeverrnsAcho que sim, Miss Beck, não vi que era amoníaco.
JacksonFoi bom eu estar aqui, ela podia ter ficado magoada.
Martha
E o que estava a fazer aqui, Jackson? Porque não está em sua enfermaria? Agora já estou a ver o que aconteceu. Não me interessa o que fazem fora deste hospital, mas aqui, são como o amoníaco e o cloro. Saia daqui para fora Jackson. Isto é o laboratório do hospital e não um quarto de motel. Não o quero o ver aqui de novo, entendeu?
Jackson
Acho que sim, Miss Beck. (e sai)
Na porta, outras duas enfermeiras assistem a repreensão. Quando Martha as vê diz:
MarthaTudo Bem. Voltem para os seus lugares.
E volta para Severns e diz: — Severns, trato de si mais tarde. Já me fez perder muito tempo. Amanhã de manhã quero-a no meu gabinete.
Severns
Lamento, Miss Beck.
Martha
Vai lamentar ainda mais, se sair da linha de novo.

Quando termina esta cena aparece Martha chutando um red wagon, vem carregada de compras de supermercado. Para ajudar definir quem é Martha, Kastle, usa este pequeno detalhe desta cena, onde aparecem os pés de Martha, chutando o carrinho, a câmara levanta até mostrar seu rosto. O tempo desta cena tem pouco mais de 1 segundo, 40 quadros para sermos mais exatos (lembramos que em vídeo 30 quadros tem 1 segundo).

Outra seqüência que merece para nós especial atenção é a troca de cartas entre Martha e Raymond. Tudo começa em abril. Quando Martha entra em casa, voltando do hospital, depois do chute no carrinho, abre a porta e comenta com Bunny

— Meu Deus como está calor e estamos só em abril

Bunny logo depois que ela entra em casa entrega a correspondência que tinha chegado e entre elas, estava uma carta do Clube da Amizade da Tia Carrey. Ela quer rejeitar mas Bunny insiste que ela deve se inscrever. A partir deste dia Martha começa a se corresponder através deste clube e conhece Raymond.

As cartas entre os dois começam.
Aparece uma carta aberta do clube da amizade, a câmara em close corre até uma mão que está a abrir uma gaveta, pega uma folha em branco, coloca sobre a mesa. Corte. Aparece o rosto de um homem de uns 30 anos, moreno, de feições latinas, falando o que escreve:

Cara Martha,Espero que não se importe que a trate assim, para lhe ser franco não sei como começar esta carta, (A câmara começa a correr mostrando que sobre a mesa existe uma grande quantidade de fotografias de mulheres, em diversos tipos de porta-retratos) pois é a primeira vez, que escrevo uma carta deste tipo.

Corta, e aparece Martha lendo a carta que Raymond estava escrevendo. Gostaria de saber um pouco sobre mim?
Tenho 34 anos e tem-me dito que não sou feio!
Trabalho com importações da Espanha, o meu país natal.
Vivo num apartamento grande demais para um celibatário, mas um dia, espero vir a partilhá-lo com uma esposa.
Porque é a que escolhi para me iniciar neste clube?
Por que é enfermeira, e por isto deve ter bom coração, e uma grande capacidade para reconfortar e amar.
Seu amigo,
Raymond Fernandez

Marta escreve para Ray

Confesso-lhe que suas cartas têm animado minha vida. Aparece Ray colocando uma fotografia em uma carta. Corta. Aparece uma fotografia de Martha no hospital com outras enfermeiras, como fotografia de colégio primário no Brasil. A última enfermeira do lado direito está desfocalizada por excesso de luz recurso que usará em todo o filme como já comentamos acima. Sobre esta foto está escrito: Obrigada por enviar esta fotografia. É exatamente como eu o imaginava. Aqui lhe envio uma minha, apesar de não me fazer justiça.

Ray escreve, (25 de abril) Gostaria que me chamasse de Ray. Só uma mulher o fez, um amor de infância, há muito falecida.
Martha
responde (5 de maio) No dia que recebo carta sua, tudo vai melhor.
Ray (12 de maio) Mande-me uma madeixa do seu cabelo.
Martha (18 de maio) Querido Ray a echarpe é linda.
Ray (25 de maio) Tentarei ir visitá-la e a sua mãe.
Martha (4 de junho) Estou desejosa que chegue.
Telegrama de Ray, Chego a estação de trens de Móbile na terça-feira. Ray

Estas cartas são importantes pois mostram o tempo da correspondência e ajudam a compreender os 2 personagens principais do filme, ele mentiroso, bonachão e envolvente e ela carente, obcecada e ansiosa. Estes temperamentos os levarão a suas próprias destruições.


Mas Kastle de uma forma comportada, mostra muito mais que a história, ele critica o "American Way of Life", presente em quase todas estas mulheres solitárias, a que canta na banheira hinos patrióticos, a que espera a herança dos pais, a que confecciona chapéus horríveis bem típicos dos americanos, a que é viúva de um soldado que deve ter morrido na guerra, e ensina com orgulho a história americana para a filha, em sua casa tem sobre a lareira do living uma águia. Todas carentes, não só querendo acabar a solidão, mas desejosas de amor carnal.

Kastle em outra ocasião explicita o caráter fascista de Martha, quando se afasta do hospital e tem o seguinte dialogo com um diretor que invadiu a sua privacidade.

DiretorMuito bem, depois da Miss Flynn ter telefonado, e dizer que tinha ido para Nova York., vim aqui à procura do mapa dos turnos. Lamento, mas encontrei a sua correspondência com o Mr. Fernandes de Nova York. Acho melhor que a leve. A nossa Diretoria não gostaria de saber, que a nossa enfermeira chefe esta envolvida num escândalo de corações solitários.
Marta Como se atreveu mexer nas minhas coisas? Devia ter vergonha! Já não sei, se o Hitler não teria razão sobre o seu povo.
Diretor
Miss Beck retire-se, antes que eu me esqueça que sou um cavalheiro.
Marta
Pode estar certo, que me vou embora! E não passe esse cheque em nome de Martha Beck. Passe-o em nome de Mrs. Raymond Fernandez. Quem pensa que sou? Fui para Nova York para me casar!
Outro ponto que merece mencionar é a música trágica de Mahler que ajuda criar o clima do filme.
As composições estéticas das cenas, mesmo comportadas invertem muitas vezes a tradicional linguagem cinematográfica, como o contre plongé usado geralmente quando é necessário mostrar superioridade, mostra o enfermeiro em completa inferioridade, inclusive ele usa este recurso para mostrar Martha em completo desespero, como usa a situação invertida. Em todo filme aparece a luz superexposta, principamente quando vem do exterior que sempre estará desfocado quando se olha do interior para fora.
A super exposição de luz é mais clara quando Ray em sua casa no subúrbio de Nova York de Valley Stream, olhando a janela onde nada se vê e diz:
— Chamam a isto Valley Stream. Que piada! Prisões seguidas, com 10 metros de relva entre elas. Valley Stream! Odeio isto aqui.

A nosso ver, Leonard Kastle fez um filme onde o menos importante é a história, que é a de mais um trhiller, mas a construção dos personagens é maravilhosa. O filme atravessa de sul a norte dos EUA, sempre pelo interior, todos os personagens moram em cidades pequenas onde o espírito americano é mais forte, Martha que é a primeira mulher de Raymond no filme, mora em Móbile City, no sul dos EUA, no golfo do México e Delphine Downing que é a última mora no Michigan ao norte dos EUA. Claro que vimos muitas vezes este filme para dissecá-lo de ponta a ponta. Acreditamos que em uma simples sessão em um cinema, é muito difícil ver tanto detalhes que tem o filme.
Recentemente, Julio Bressane estava adaptando um conto de um escritor famoso, nos falou. "Li e reli este conto, mais de cem vezes e sempre que relia descobria alguma coisa nova".

Para nós, qualquer grande obra de arte não acaba quando ao final de sua apresentação. Nós descobriremos sempre mais coisas em uma nova apreciação. É isso a nosso ver o que define uma obra de arte.
Para terminar apresentamos um fotograma, como é mostrado no filme, da seqüência na casa de Delphine, que é a vista pela janela, sua filha e Raymond chegando em casa. No filme só se conseguem ver vultos, a janela está aberta e está claro lá fora, mas para quem está na casa a luz que vem do exterior não permite ver o que acontece lá fora.