Cineclube Polytheama

domingo, janeiro 23, 2005

Cineclube Polytheama

O Cineclube Polytheama foi fundado no dia 6 de janeiro de 2005, com a finalidade de reunir amigos em torno de um filme, para depois de sua exibição, discutí-lo.

O primeiro filme foi "Depois do Ensaio" (Efter repetitionen), de Ingmar Bergman. Após a exibição, passou-se à discussão do filme, devidamente acompanhada por uma Rôsca de Reis (afinal, era dia 6 de janeiro!). O programa foi ainda complementado com a exibição do curta "Quimera" de Erik Rocha e Tunga .

Como, em princípio, as sessões serão a cada quinzena, aproveitamos o feriado do dia 20 de janeiro, para fazer a reunião em Pedro do Rio, quando pudemos assistir ao filme "Gertrude", de Carl. Th. Dreyer. As discussões se prolongaram durante o almoço, até o final da tarde.

Sobre o citado filme, podemos considerar o texto a seguir:

Gertrude, baseado no romance homônimo de Hjalmar Söderberg (1869-1941), é a história de uma mulher, Gertrude Kanning, solitária que procurou sempre o amor, três casos são comentados; o primeiro foi uma grande paixão da juventude por um poeta (Gabriel Lidman), que mesmo amando-a muito, considerava seu trabalho mais importante do que ela; quando por um acaso ela descobre isto, ela se afasta, por até achar que poderia estar prejudicando a construção de sua obra mas também, por não concordar com este procedimento, já que para ela, ele era o grande motivo de sua vida naquele instante.

O segundo era um próspero advogado (Gustav Kanning), com quem se casou, neste, ela encontrava segurança e durante muito tempo não se importou em ser uma razão secundária na vida dele, inclusive percebe-se que tinha abandonado sua vida de artista. Com este sempre esteve sozinha, ele controlava tudo a seu redor, era o grande senhor, até a própria mãe a quem ele sustentava, com Gustav ela diz que no inicio existiu entre eles alguma coisa parecida com o amor.

O terceiro caso era um músico mais novo (Erland Jansson), que a fez sentir querida e mulher, era o amor da maturidade, poderia agora enfim encontrar a felicidade, não se entregou rápido a este jovem, só o fez depois de falar para o marido "importante futuro ministro" que estava apaixonada. Mas na realidade ela viria a ser somente mais um caso para este pianista.

Além dos três envolvimentos amorosos teve um amigo (Axel Nygen), com quem depois da terceira separação se encontrou em Paris. Esta amizade sim, continuaria a vida inteira.

Acredito que seja esta a história. Mas Dreyer coloca muito mais do que este resumo em seu filme. Os personagens, com exceção do jovem pianista, pertencem a casta da classe burguesa da Dinamarca, estão sempre elegantemente vestidos, circulam em cenários que foram cuidadosamente preparados pois era preciso criar o ambiente, e nós sentimos mais isto, vendo a entrevista do ator que interpreta Erland (Baard Owe), feita muitos anos após a filmagem, provavelmente para o lançamento do DVD. Nesta entrevista ele explica, que para o Dreyer tudo era importante, como as figuras de Afrodite e Leda, presentes em vários momentos do filme, até mesmo quando elas estão escondidas, pois ele sabia que elas estavam lá e isto era o que importava.

Vi os personagens apresentados desta forma;
Gertrude está sempre distante, sempre olhando no vazio, talvez olhando para si mesmo para a sua solidão, como se mostra olhando "através do espelho".
O marido, como um homem superior, magnânimo, "compreensivo", que até propõe viver juntos como amigos, quando sabe da concretização do caso dela, mas não quer aceitar de maneira nenhuma perder a posse, pois Gertrude era um objeto que lhe pertencia.
O poeta Lidman está arrependido de não ter procurado saber o motivo do afastamento de Gertrude no passado, agora se diz apaixonado e que gostaria de recomeçar um romance que para ela tinha terminado a muito tempo.
O músico jovem talentoso só a queria como uma nova aventura e poder se gabar disto, não tinha nenhuma paixão por ela.
O amigo, este sim sempre compreensivo e sempre procurou estar perto a vida inteira.

Os cenários;
A sala da casa dos Kanning está sempre arrumada sem nada fora do lugar.
O parque, com um lago com alamedas de árvores em suas margens e uma estátua de Afrodite. Neste cenário Gertrude encontrou Erland, duas vezes, na primeira ela chegou atrasada e na segunda, ele.
O apartamento do amante, com um piano na sala e um quarto que não aparece, mas que Dreyer sabia que havia lá uma persiana com "Leda e o Cisne" e ali ela iria se entregar ao seu novo amor. Detalhe muito bem lembrado pelo Roberto, ela fuma um cigarro depois.
O salão de recepções, provavelmente de uma universidade onde Lidman iria receber uma homenagem em uma Noite de Gala, com uma grande mesa que é apresentada em um travelling com a tomada em meio plongé, existe um espaço na frente da mesa e uma escada lateral, a sala que dá a um corredor com arcos e por ali entra um coro de jovens com um estandarte com a figura de um rei, o ano de 1883 e velas, na frente, atrás do líder vem um jovem que toca tarol, param em frente à parte central da mesa e um dos jovens fará homengem ao poeta inclusive recitando um poema falando do amor. Quem sabe se não tinha sido feito para Gertrude?
A outra sala, onde ela vai descansar depois de ter um pequeno mal-estar, é espaçosa e fria, com um grande quadro com uma mulher nua de frente sendo atacada por cães. Neste lugar ela conversa com seu amigo psicanalista Axel que está trabalhando em Paris e, no final da conversa diz para ele que teve um sonho igual ao do quadro. Depois conversa com o marido que não aceita a separação. Eles se falam mas os dois olham no vazio, seus olhares nunca se encontram.
Em outro salão por fim encontra com Lidman e ele fala do amor que ainda tem por ela, e comenta da festa a que tinha ido no dia anterior e lá, tinha encontrado Erland que narrou a aventura que tinha tido com Gertrude antes da festa. Por fim chega Gustav acompanhado de Erland e pede para ela cantar acompanhada deste jovem pianista. Ela aceita cantar, mas não agüenta e desmaia no final.

Detalhes do filme:
Dreyer utiliza um flashback, com a fotografia super exposta, como Resnais tinha usado em Marienbad. Eu acredito que ele usou este recurso com humildade, sem se importar que outro grande diretor o tivesse utilizado antes.
Os diálogos do filme são belíssimos, mesmo sendo tradução, gostaria de tê-los, para poder lê-los constantemente.
Todos os enquadramentos foram cuidadosamente estudados, nada está fora do lugar em todos os planos.
A montagem foi feita sem sobressaltos, sempre mostrando como Dreyer gostaria que nós víssemos toda as cenas.

Os detalhes são sempre sutis como por exemplo a carruagem que leva o marido à ópera para encontrar a mulher, que lá não estava. Com este pequeno detalhe e mais o telefone em que ela fala no final ele cita a época da história, final do século XIX e início do século XX, quando a mulher começava a procurar sua independência.

Olhando desta forma, como eu vi, posso dizer que Gertrude é chata? A meu ver ela sempre foi usada e não teve chance, a vida inteira, de encontrar o amor. Ela não amava o marido, mas será que se ele a considerasse como mulher e não como objeto, ela não o teria amado?

Será que depois de várias tentativas valeria apenas tentar de novo? Ou ela se contentaria em envelhecer, mesmo solitária, esperando agora a morte, até tendo comprado a sepultura do lado de uma amoreira? O filme termina com os dois amigos, ela e Axé,l depois de um encontro no dia de seu aniversário acenando de longe, ele sai, ela fecha a porta. Não é lindo?

Ela tinha escrito um poema quando era bem jovem e nunca conseguiu se realizar.

Olha para mim.
Sou linda?
Não.
Mas amei

Olha para mim.
Sou nova?
Não.
Mas amei.

Olha para mim.
Estou viva?
Não.
Mas amei.

A Gertrude, com 16 anos, escreveu um evangelho de amor.