sexta-feira, fevereiro 11, 2005

O PÂNTANO ( La Ciénaga)

“O Pântano” (La Ciénaga – Argentina – 2001 – 103 min.) Dir.: Lucrecia Martel (14/12/1966). Com: Gabriela Borges (Mecha), Mercedes Móran (Tali), Martin Adjenián (Gregório), Silvia Baylé (Mercedes), Leonora Balcarce (Verónica), Andrea López (Isabel).

Inicialmente vamos tentar localizar o povoado La Ciénaga: existe um povoado com este nome na província de Catamarca, ao noroeste da Argentina, situada a mais de 1200 km de Buenos Aires. A cidade mais próxima é Belém a 25 km, situada em uma região de muitos charcos (ciénagas), perigosa para animais, como o gado. Lucrecia Martel é da região (Salta, província acima de Catamarca). O povoado do filme pode ser esta ou uma cidade imaginária nesta mesma região, quase fronteira da Bolívia.

Faremos inicialmente um resumo da história do filme, e depois entraremos em detalhes. A história se passa em um mês de fevereiro, úmido com muita chuva, no carnaval, próximo ao início das aulas. Mecha mora ou passa um tempo em seu sítio “La Mandrágora”, que o explora com uma plantação de pimentões vermelhos, com o marido que pinta o cabelo, 3 filhos e 2 empregadas. Está sempre cercada de amigos e bebe o tempo todo. Sua casa é grande, tem uma grande piscina que está sempre muito suja, não permitindo banhos, mas todos ficam em torno dela. Sua prima Tali, mora em um povoado perto do sítio, em uma pequena casa ao lado tem vizinhos com cachorros barulhentos, com seu marido é atencioso e 4 filhos. Junto com Mecha faz planos para irem comprar material escolar e outras coisinhas mais, na Bolívia.

Mecha sempre bêbada logo no início sofre um acidente, cai quando levava vários copos vazios e fere o seu colo. Na hora, nenhuma das pessoas que estavam perto foi socorrê-la. Seu filho mais velho José, que vive em Buenos Aires com Mercedes amiga de sua mãe e da prima Tali, ex-amante de seu pai, que vende os pimentões vermelhos produzidos em La Mandrágora, é avisado do acidente e vem rápido para “La Mandragora”

A chegada do filho e o acidente de Mecha em nada modifica na rotina da casa, e as brincadeiras continuam. Mecha continua bebendo e falando que Isabel, a empregada mais nova, está roubando roupa de cama e mesa; planejando com Tali a viagem a Bolívia; vendo na TV a historia do aparecimento da Virgem em uma caixa dágua. As crianças caçam com armas de fogo no bosque do sítio, onde uma vaca ficou presa em um charco. Chove muito, mas todos saem para a cidade para brincar carnaval. José briga e é ferido no nariz. É mais um com cicatriz, pois o filho mais novo Joaquim, tem que fazer uma operação na vista que perdeu em um acidente de caça, o outro tem cicatrizes no rosto. Durante um bom período é mostrada a rotina das pessoas no sítio: estão deitadas, dançando, tomando banho de chuveiro, ou em uma represa, em uma pescaria e etc.

Isabel vai embora, por livre e espontânea vontade, para tristeza de Verônica (Vero) filha do meio de Mecha; José tem que retornar a Buenos Aires e o marido de Tali , frustra a viagem das primas à Bolívia, comprando todo material escolar na Argentina por um bom preço. Luciano (Luchi) brinca na pequena área cimentada de casa e ao subir em uma escada para ver o cachorro do vizinho cai, quando pisa no último degrau que se quebra. Agora os jovens estão à beira da piscina como estavam os mais velhos no início do filme.

A beleza do filme é pela maneira como Lucrecia Martel desenvolve esta historia. Inicialmente vamos falar da fotografia, com cores quentes que representam tão bem a América Latina. Quase todo o filme é feito com câmara média, onde se podem ver rostos com cicatrizes, peles rolando sobre as camas, sem sexo, algumas vezes até sugerindo relações incestuosas entre irmãos, mas nada concretizado. O roteiro foi bem desenvolvido, para retratar uma situação em que, em grande parte do filme não nada acontece, mas cada cena é importante. Na primeira cena é mostrada a indiferença das pessoas com a queda de Mecha; na chegada de Tali ao sítio, ela quebra uma corrente com cadeado, para abrir o portão; a filha de 15 anos sem carteira que tem pegar o carro, a mando do pai, para ir ao hospital; a caça das crianças em local pantanoso; as cenas de TV mostrando o aparecimento da Virgem em uma caixa d´água para uma judia, em uma única vez, mas que virou o fato importante do país; o marido de Mecha, Gregório, é expulso do quarto porque tinge os cabelos e suja as roupas de cama; a pesca de bagre na represa é com facões, em uma divertida brincadeira; Vero está há quatro dias com o mesmo maiô sem tomar banho; a piscina está com água imunda pois as bombas e filtro quebraram a muito tempo e ninguém se preocupou em concertar. Achamos que não é necessário detalhar mais cenas.

Vamos falar um pouco como vemos o filme. A história se passa no interior da Argentina atual, com todas as suas crises econômicas, onde tudo é difícil, como vender pimentões ou comprar material escolar, tudo está degradado, como um terreno alagadiço, onde as pessoas tem andar com muito cuidado para não atolar. A relação entre as pessoas é superficial e vazia até entre as de uma mesma família e nada acontece que possa modificar este estado, não existe nem um diálogo profundo e carinho entre as pessoas, só Vero que tenta isto com Isabel, que vai embora com o namorado, esta é a única que tenta modificar a sua vida. As pessoas na Argentina ficam preocupadas com fatos sem importância, como o aparecimento duvidoso da Virgem em uma caixa d´água.

Neste estado podemos ver, um país típico da América Latina, onde as leis não são respeitadas, como a direção sem habilitação de uma adolescente instruída pelo pai que fala; “Porque você ainda não tirou carteira?” E ela responde: “só tenho 15 anos”. As crianças com armas de fogo, a ida à Bolívia para contrabandear algumas coisinhas. Tudo isto vemos acontecer também aqui no Brasil, principalmente no interior, onde nada é mesmo respeitado, principalmente se for de uma família regional importante. Tudo é permitido.

A morte de Luchi em um acidente poderia modificar, mas nada muda e os mais jovens estão seguindo os mesmos passos dos mais velhos, arrastando as cadeiras como estes faziam em volta da piscina.

3 Comments:

Anonymous Anônimo said...

Júlio:
Um pouco mais ou menos é aquilo mesmo que você diz na sua sinopse. Reflete
parte dos comentários de quinta-feira e nos faz relembrar um pouco do filme
que, como você alertou, cresce com a distância.
Gostaria de conversar com você a respeito, porque me quedei embatucado a
pensar sobre muitas coisas que ultrapassam a nossa conversa lá na casa da
Marcie.

Primeiro, porque é um filme sobre a crise, não a econômica exclusiva da
América do Sul, mas a permanente da classe média, sem outro lugar além da
realidade imediata em que nos debatemos. O pântano. E nisso é realista na
aparência, porque a essência dos personagens é apenas insinuada, em imagens
ou palavras que tencionam mostrar mas não definir.

É claro que, no pântano, são tragados o matriarcado das propriedades rurais,
embora a autoridade da mãe nunca seja definitivamente questionada, o macho
latino patético com seus cabelos tingidos de juventude morta, a juventue viva
sem compreender bem por que o carnaval não mais subverte hábitos, apenas
desencadeia a violência que só assim irrompe no cotidiano insatisfatório da
crise.

Embora a energia de uma nova classe emergente transpareça no marido de Tali,
metalúrgico e empregado de um mundo que supostamente funciona, disposto a
interromper a viagem ao modesto paraíso de Mecha e Tali, detestando La
Mandragora, seu imobilismo que arrasta inexoravelmente a família dispersa
para devaneios perdidos num remoto passado de segurança, hoje a terra
firme de empreendedores equivocados, como Mercedes em Buenos Aires, sequer
dona de sua vida de falsa modernidade e adotando incestuosamente o sobrinho
postiço.

Acho um quadro muito desalentador e opressivo, como conversamos na quinta, e
nisso a cena inicial é primorosa: inação permeada de desespero, num tempo
narrativo perfeito. Personagens desprovidos de futuro, com os olhos fitos num
horizonte sem fundo, arrastando as cadeiras grilhões numa tensão em que nada
acontece, a não ser o carnaval dos rostos empoados sem expressão, nenhuma dor
profunda ou vontade de fato, apenas desejo de posse e embriaguez que
eclode em violência, cicatrizes íntimas vindas na ressaca de uma crise sem
fim. O pântano. Dele nem as crianças escapam.

Não se enxergam essas cicatrizes nos corpos marcados de Mecha ou Jose. Mas
no exame profundo dos ambientes e personagens, magnificamente descritos mas
nunca em si revelados, através deles talvez venhamos a compreender nossa
própria e sofrida humanidade, fincada na Baixa América sem destino.

Penso, Júlio, que você devia realmente emendar com a Beleza da Alta América,
na próxima sessão. Acho que há muito a compreender nas entrelinhas dos
personagens, inclusive a grandeza deste último filme, que passou para mim
despercebida na tela grande. Acho que os dois filmes têm realmente a ver e que
você devia recomeçar a discussão por aí. O que é afinal o aparente realismo
dos dois? E a crise , como se introduz inclusive nessa nossa discussão?

A respeito dessa última pergunta, permita dizer que nem você , nem a Marici ,
me pareceram felizes naquele breve bate boca com intenso calor e pouca luz.
Mas vocês têm a vantagem de estar proporcionando esses encontros em que me
percebo de volta a um grupo de felizardos, escolhidos entre si para partilhar
idéias, opiniões e estarem simplesmente felizes na companhia uns dos outros.
Como era antigamente com a gente, eu, você, Cláudio e o Amauri. Epa, olha eu
aí saudosista!... É o paaaaaaaaaaaaaântano, é a lama, é o fim do caminho, sem
águas de março para lavar a alma.

Um abração, muito obrigado por quinta-feira, ando meio burro sem ler, mas me
convida assim mesmo para a próxima.
Elmar

quinta-feira, fevereiro 10, 2005  
Blogger Roberto said...

Muito bons, tanto o resumo e os comentários do Júlio, quanto o do Elmar.
Só queria, muito de passagem, fechar o foco num aspecto em particular, a absoluta ausência de reflexão das pessoas sobre si próprias, numa como que existência vegetativa sem consciência de si mesma. O que só pode redundar num pântano existencial, que é para onde o pensamento dominante parece determinado a empurrar todos nós.
Como contraponto, aponto e sugiro "Faço, Desfaço, Refaço", a peça de e sobre Louise Bourgeois, excepcionalmente solada pela Denise Stoklos. É uma lição de vida, de lucidez aguda, de busca implacável da própria verdade, de exigência de liberdade, sem concessões, principalmente consigo e com a própria neurose. É a anti-ciénaga.

domingo, fevereiro 13, 2005  
Anonymous Anônimo said...

Por que nao:)

sábado, novembro 21, 2009  

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